Se não me engano foi em março de 1990. Havia uma lanchonete próxima a empresa que eu trabalhava. Habitual-mente fazia meu café da manhã lá. O almoço era certeiro.
Todas as manhãs um sujeito se aproximava da entrada e em gestos rápidos e estranhos, numa mistura de pressa, educação e vergonha, pedia um café e um pão. Inclusive eu em meio a tantos não resistia àquele ritual e acabava por ceder ao pedido.
A aparência dele que era triste largada e de pouco asseio era a mais ilustrativa das figuras urbanas. Morador de rua, “o homem do saco”, literalmente um homem sofrido que carregava toda sua propriedade em um saco de estopa. Seus cabelos, a barba e o rosto se fundiam num emaranhado de farpas. Quem já esteve próximo a um morador de rua sabe que o cheiro é revelador da situação. Para organizar e certificar toda esta descrição, se faz necessário dizer que é típico o aroma defumado das fogueiras ao pé de um abrigo (sob pontes, obras paradas, casebres abandonados...) para espantar o frio solitário. O acre da sujeira contida e a inevitável falta de higiene. Experimente você lavar suas roupas sem sabão, em água duvidosa, depois secá-las sobre superfícies rasteiras e ao menor sinal de enxutas vestirem-las, pois são as únicas possíveis. Bom...chega dessa descrição dolorosa.
Ele despertou em quase todos uma atração fraterna que culminou no rompimento do silêncio (tudo acontecia sem verbo) por parte de um rapaz, o Silvio, filho do Sr. Manolo, dono da lanchonete. O Silvio fez uma entrevista básica. Em meio a uma conversa despretensiosa lá veio a revelação:
O nome: Miguel;
A situação: desempregado após um longo tempo trabalhando como zelador de chácara. Foi essa forma que ele encontrou para se sustentar no momento que se interrompeu a sua verdadeira profissão;
Profissão: Oficial Confeiteiro, registrado em carteira (sim! Ele tinha a tal carteira profissional) por mais de dez anos.
Por quê? O Buffet onde trabalhou no último momento de confeiteiro faliu. Quem viveu a década de 80 sabe quão difícil era manter uma empreitada baseada em falta de perspectiva e crédito. Mais difícil era se recolocar no mercado de trabalho numa profissão mais ou menos “bem” remunerada.
Este cenário acabou por inspirar o Silvio que veio a mim e pediu que redigisse um texto. Esse texto deveria despertar nas pessoas a vontade de ajudar o Miguel. Bastava ler, entender, assinar e colaborar com qualquer valor.
Deu certo, arrecadou-se junto aos freqüentadores da lanchonete (e adjacências) uma quantia significativa.
E agora???
Sem pedir orientação alguma se decidiu o seguinte:
- Miguel. Você tem família?
- Tenho sim.
- Onde que eles estão?
- Ribeira do Pombal.
- Onde fica isso?
- Bahia.
- É longe, é?
- Uns três dias.
- Quer voltar pra lá?
- Oxi!
- Então tá.
O Alemão, dono da banca de jornal e vizinho a lanchonete, providenciou banho e corte de cabelo.
As roupas vieram como veio o dinheiro, por pura cooperação.
Dia seguinte Miguel aparece saindo da casa do Alemão, depois de passar uma noite em lençóis, todo pomposo, dentro de uma calça de “terbrim” azul clara, uma camisa social branca, cabelos penteados, um rosto sorridente e barbeado (se bem que com alguns arranhões da lâmina de barbear).
- Tó, tá aqui a passagem.
- Sério, nossa....
- Sai hoje, lá do Tietê, às 16:00 hs.
- Pô.
- Esse dinheiro aqui é o que sobrou. Dá pra você comer na viagem e se virar pra chegar na sua casa.
Em comitiva levamos o Miguel. Embarcou no horário certo. Teve até “tchauzinho” com lenço branco. Lá foi ele direto ao destino que todos ali acreditavam que fosse o melhor.
O tempo passou e todos deixaram de discutir sobre o paradeiro do “ex-homem do saco”.
Aproximadamente um ano depois...o Silvio chamou-me durante o almoço. Mostrou de longe um papel de caderno. Daqueles que quando você destaca da espiral fica cheio de rebarba.
Era uma carta do Miguel. Tava lá assim, bem simples:
“Desculpe pela falta de notícias. É que com a vida que levei aí nos últimos tempos, acabei por quase desaprender a escrever. Só agora criei coragem e pedi para que minha irmã ajudasse a escrever para vocês.
Encontrei toda minha família. Estou estudando novamente e consegui um emprego.
Deus abençoe a todos e logo mandarei outra carta”. “Miguel.”
Não tive mais notícias do Miguel. Mas pra quê?
Assistencialismo desorientado, talvez. Sei que foi uma baita lição de solidariedade.
Todas as manhãs um sujeito se aproximava da entrada e em gestos rápidos e estranhos, numa mistura de pressa, educação e vergonha, pedia um café e um pão. Inclusive eu em meio a tantos não resistia àquele ritual e acabava por ceder ao pedido.
A aparência dele que era triste largada e de pouco asseio era a mais ilustrativa das figuras urbanas. Morador de rua, “o homem do saco”, literalmente um homem sofrido que carregava toda sua propriedade em um saco de estopa. Seus cabelos, a barba e o rosto se fundiam num emaranhado de farpas. Quem já esteve próximo a um morador de rua sabe que o cheiro é revelador da situação. Para organizar e certificar toda esta descrição, se faz necessário dizer que é típico o aroma defumado das fogueiras ao pé de um abrigo (sob pontes, obras paradas, casebres abandonados...) para espantar o frio solitário. O acre da sujeira contida e a inevitável falta de higiene. Experimente você lavar suas roupas sem sabão, em água duvidosa, depois secá-las sobre superfícies rasteiras e ao menor sinal de enxutas vestirem-las, pois são as únicas possíveis. Bom...chega dessa descrição dolorosa.
Ele despertou em quase todos uma atração fraterna que culminou no rompimento do silêncio (tudo acontecia sem verbo) por parte de um rapaz, o Silvio, filho do Sr. Manolo, dono da lanchonete. O Silvio fez uma entrevista básica. Em meio a uma conversa despretensiosa lá veio a revelação:
O nome: Miguel;
A situação: desempregado após um longo tempo trabalhando como zelador de chácara. Foi essa forma que ele encontrou para se sustentar no momento que se interrompeu a sua verdadeira profissão;
Profissão: Oficial Confeiteiro, registrado em carteira (sim! Ele tinha a tal carteira profissional) por mais de dez anos.
Por quê? O Buffet onde trabalhou no último momento de confeiteiro faliu. Quem viveu a década de 80 sabe quão difícil era manter uma empreitada baseada em falta de perspectiva e crédito. Mais difícil era se recolocar no mercado de trabalho numa profissão mais ou menos “bem” remunerada.
Este cenário acabou por inspirar o Silvio que veio a mim e pediu que redigisse um texto. Esse texto deveria despertar nas pessoas a vontade de ajudar o Miguel. Bastava ler, entender, assinar e colaborar com qualquer valor.
Deu certo, arrecadou-se junto aos freqüentadores da lanchonete (e adjacências) uma quantia significativa.
E agora???
Sem pedir orientação alguma se decidiu o seguinte:
- Miguel. Você tem família?
- Tenho sim.
- Onde que eles estão?
- Ribeira do Pombal.
- Onde fica isso?
- Bahia.
- É longe, é?
- Uns três dias.
- Quer voltar pra lá?
- Oxi!
- Então tá.
O Alemão, dono da banca de jornal e vizinho a lanchonete, providenciou banho e corte de cabelo.
As roupas vieram como veio o dinheiro, por pura cooperação.
Dia seguinte Miguel aparece saindo da casa do Alemão, depois de passar uma noite em lençóis, todo pomposo, dentro de uma calça de “terbrim” azul clara, uma camisa social branca, cabelos penteados, um rosto sorridente e barbeado (se bem que com alguns arranhões da lâmina de barbear).
- Tó, tá aqui a passagem.
- Sério, nossa....
- Sai hoje, lá do Tietê, às 16:00 hs.
- Pô.
- Esse dinheiro aqui é o que sobrou. Dá pra você comer na viagem e se virar pra chegar na sua casa.
Em comitiva levamos o Miguel. Embarcou no horário certo. Teve até “tchauzinho” com lenço branco. Lá foi ele direto ao destino que todos ali acreditavam que fosse o melhor.
O tempo passou e todos deixaram de discutir sobre o paradeiro do “ex-homem do saco”.
Aproximadamente um ano depois...o Silvio chamou-me durante o almoço. Mostrou de longe um papel de caderno. Daqueles que quando você destaca da espiral fica cheio de rebarba.
Era uma carta do Miguel. Tava lá assim, bem simples:
“Desculpe pela falta de notícias. É que com a vida que levei aí nos últimos tempos, acabei por quase desaprender a escrever. Só agora criei coragem e pedi para que minha irmã ajudasse a escrever para vocês.
Encontrei toda minha família. Estou estudando novamente e consegui um emprego.
Deus abençoe a todos e logo mandarei outra carta”. “Miguel.”
Não tive mais notícias do Miguel. Mas pra quê?
Assistencialismo desorientado, talvez. Sei que foi uma baita lição de solidariedade.
Oi Rubinho;
ResponderExcluirCom um texto desses você poderia facilmente se transformar em um profissional das letras.
Um grande abraço;
Jairo
Lindo, lindo, lindo ... de arrepiar. Toca a alma!
ResponderExcluirBeijos
Dé Colagiovanni